quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

2035 (versão 2)

Acordo de sobresalto. "Bolas, estou atrasado", se calhar não devia ter ido ao cinema. Soube bem. Vou rapidamente tomar banho, penso nas coisas que tenho para fazer, no percurso reparei que tenho mesmo que arrumar a casa. Saio do banho, o meu olhar divide-se entre o relógio que está no canto do quarto e o roupeiro. Não tenho reuniões, visto-me mais casual. Passo pela cozinha como quem pensa "devias tomar o pequeno almoço", mas não vale a pena, é todos os dias o mesmo, desloco o mesmo olhar errante e acabo por comer no trabalho ou a caminho. Meto-me no carro e saio de casa. No sítio do costume, aquele cruzamento que teima em reunir carros de todos os tamanhos e feitios, um desconhecido a entregar o jornal gratuito. "Um" porque costumam ser perto de dez, um para cada jornal diário. Felizmente as noticias são outras mas o papel é o mesmo de outro qualquer dia. É bom saber que fecharam o circulo de produção e utilização dos jornais, com aquela reciclagem exclusiva. A Recipaper é uma das empresas mais cotadas na bolsa. Deixo o carro na estação e preparo-me para apanhar o comboio. Espero vinte minutos. Nada. Óbvio, tinha-me esquecido que havia greve geral. Sorri. Lembrei-me dos dias e que tudo parava por causa de uma greve. Antes de conseguir concluir o pensamento chega o comboio. Leio no jornal que vão demolir o Estoril Sol Residence e que finalmente escolheram o responsável para o Plano de Pormenor do Parque Mayer. Suspiro. Tudo tranquilo, aproveito para ceder ao cansaço matinal. Chego ao trabalho meia hora atrasado, no elevador encontro a Maria. A Maria é aquela administrativa esbelta, de cabelo escuro e olhos verdes que está sempre a sorrir e a brincar. Diz-me que hoje ia ver a estreia da companhia de dança da Gulbenkian. Sorri. Já lá em cima percorro o corredor e dirijo-me ao escritório, são trinta segundos de alegres "bom dia", seja para o lado direito ou para o esquerdo. Sento-me no estirador e abro o lap-top, a sincronização é imediata. O perfil profissional do computador é automaticamente assumido e começa a dar indicações dos mails, agenda e notas para o dia de hoje. Perco cinco minutos com o essencial. A Ana mandou-me uma mensagem, quer vir ter comigo ao final do dia. Parece que descobriu uma nova esplanada na Mouraria. Conheci a Ana através de um conhecido de um amigo, ou seja, fui a casa deste Carlos com o Manuel e conheci a Ana. A Ana tem aproximadamente um metro e setenta, olhos azuis e cabelos claros, a pele é clara, uniforme, suave, com um toque dado de certeza por uma das muitas esplanadas da capital. Ela estava espectacular, e cativou-me com aquele olhar penetrante. Confesso que no princípio até intimidava um pouco, tal era a panóplia de sensações que me atravessavam, mas rapidamente habituei-me. Tenho duas reuniões em conferência, uma com a Comissão Regional para a Regeneração Urbana de Lisboa e Vale do Tejo e outra para Madrid. Vou almoçar. Quando saio do escritório percorro normalmente a pé os três quarteirões que me separam da Praça Manoel de Oliveira, à beira rio. É um local tranquilo, seguro e acolhedor. Os edifícios não passam dos quatro pisos, nas suas várias cores e feitios, as ruas são estreitas e cheias de gente, e a praça enorme, aberta sobre o rio. O contraste é impressionante e cativante. Imagino o que seria à trinta anos quando tudo isto era uma zona industrial. Depois do almoço volto ao trabalho. As tardes normalmente passam a correr, é a altura de maior concentração, e por sinal de maior inspiração. A luz indirecta que entra no escritório e o borbulhar de movimento na rua são fonte suficiente. São 19 horas, volto para casa. Já é de noite e as ruas estão cheias de gente. Como é natal as pessoas não apressam o andar em direcção a casa, deslocam-se lentamente pelo encruzilhado de ruas e praças repletas de luzes e lojas. Em algumas fachadas os habituais anúncios virtuais, alguns projectam-se sobre mim. No meio da brisa fresca um odor a castanhas. Procuro na minha memória a sensação daquele fruto quente nas mãos, o quebrar da casca e o sabor que perdura. Depois do comboio e já a chegar a casa passo por antigos condomínios abandonados. Já à largos anos que se tornaram incomportáveis economicamente, o seu valor caiu, até tornarem-se obsoletos. Havia segurança, movimento e pessoas na rua, o que transmitia mais conforto que uma data de câmaras de segurança num circuito fechado. Para mim até era bom, eram áreas de oportunidade para a cidade crescer dentro de si, e como tal sinónimo de trabalho. Chego a casa, tomo banho, arranjo-me, saio. Fui buscar a Ana a Mafra, tive que ir de carro. Pena ser inverno, no verão percorreria a imensidão de praias que aquele concelho tem. A Ana mora numa urbanização nova, onde o espaço público domina sobre as ruas e carros, tem cafés e comércio de primeira necessidade, e as árvores são alimentadas por sistemas sustentáveis de circuito fechado. Parei o carro num parque a 200 metros da casa dela. A meio caminho oiço alguém chamar, era a Ana. Tinha saído de casa para apreciar a noite e viu-me a caminho. Apanhamos a circular metropolitana de Lisboa e entramos na capital pelo norte. Estacionei o carro na Praça da Figueira e seguimos a pé. A Mouraria tornara-se num bairro de jovens, todas as casas eram alugadas e os interiores desenhados por dezenas de conceituados arquitectos portugueses. Foi tudo gratuito, cada prédio tem uma placa a falar do projectista, dos patrocínios e a agradecer em nome do Município de Lisboa. Os restaurantes, de design exigente tinham sempre preços acessíveis e mudavam de 5 em 5 anos. A Ana diz que descobriu um restaurante novo através da newsletter da agência que promove o bairro. Chegamos a um prédio discreto, subimos umas escadas e entramos num espaço pequeno, acolhedor e colorido, o restaurante devia dar para um máximo de 20 pessoas, a vista sobre a cidade era incrível. Durante duas horas somos inundados de cheiros e sabores, a vista acompanha as cores e percorre o espaço, os empregados sussurram e nada falta. Começamos a despertar do feitiço quando reparamos ser as duas ultimas pessoas no restaurante. Descemos e passeamos até à baixa. Alguns restaurantes, e a circulação de pessoas entre as várias colinas, profundamente animadas de dia e à noite, tornaram esta zona uma das mais movimentadas à noite. Calmamente voltamos para o carro em silêncio. Ao chegar ao pé do parque a Ana diz-me que não quer ir para casa. Eu concordo. “Lá vou eu chegar outra vez atrasado”. Ela sorri.

2 comentários:

Guilherme Godinho disse...

Grande Tiago,

A tua paixao pela ¿Ana? cresce, acompanhada pela praça Manuel de Oliveira e pelos condomínios fechados, agora oportunidade de negócio... Estamos só em 2035. E já nao há condomínios fechados, provavelmente as favelas sao agradáveis "mourarias" ou "alfamas" e... o problema é que o tele-transporte ainda está em afinaçoes...

"Beam me up Scoty".

GG

TT disse...

Grande Guilherme,

Qualquer versão é ficção. A verdade é que, conforme sabes, o nosso esforço e trabalho de hoje traça o futuro de amanhã, e amanhã, na nossa escala de intervenção pode ser já 2035. A grande pergunta fica para os visitantes "Em qual destes mundos gostavas de viver?"

A narrativa, outra minha paixão, é uma forma muito pessoal de despertar curiosos para o que se passa à nossa volta.

No outro dia respondi de forma muito séria e preocupada (e técnica, infelizmente) a um debate num forum (com base numa paródia sobre um projecto controverso). Alguém responde-me:
"...é só uma brincadeira". Sorri.